Capítulo 1 - A Guerra da Criação

Era mais um dia pacato naquela tribo onde moravam cerca de 30 Swara. A Fogueira Central, com chamas Tata (de Fogo), subia ao céu, enquanto o evento mais sublime do ano acontecia. Para os nativos, era motivo de alegria, celebração da festa de Nhanderuvuçu, a entidade reveladora da criação para eles. Uma grande quantidade de oferendas que seriam devoradas após serem oferecidas à divindade era enorme. Diversos javalis, peixes e aves estavam assando ao redor da fogueira, que era cercada de indígenas dançando e cantando músicas para seu deus.

Mãe, a senhora está bem? Não consegue mais se levantar... Tenho medo de...

Meu querido Ubirajara! - Disse sua mãe, segurando com todas as forças o seu braço. - Sabe que tudo é Bagual (mortal). Nada veio para não ir! Irei me encontrar com meu querido Manu (morto), seu pai! Sabe o quanto espero por vê-lo novamente! - Dizia, quase sem forças, a velha Iracema, com 93 anos, doente pela idade, sem a mesma energia que tinha antes para manter o pequeno filho, Zaki Ukuthula, agora com seus 50 anos, alegre após a morte do pai.

Não quero perdê-la, Ceci (mãe). Sabe que é a unica que não me olha com julgamento. Já não bastasse o fardo de meu pai... - Uma pequena pausa o fez pensar no que estava falando. - Quero apenas que permaneça comigo! Seu olhar me acalma durante as noites, me fazem sentir o calor do amor que emana de sua Anga (alma).

Pequeno Curumim! Meu pequeno Zaki... - Tossiu a velha índia. - Ficarei com você! Estou dentro do seu coração! Seus olhos refletem com pureza o que de melhor tinha seu Ru (pai). Seu espírito é um com o dele, e agora, será também um com o meu... - Tossiu novamente, o que fez sair um pouco de sangue de seu nariz.

Perudá (amor) meu! Carne que me gerou! Descanse mais um pouco. Precisa ficar bem para comemorar a festa de Nhanderuvuçu! - Abraçou sua mãe, com pesar no coração. - Ainda temos uma última dança para oferecer a ele!

Subitamente, um som ecoou na tribo. Parecia direcionado à Zaki e sua mãe. Talvez somente eles tivessem escutado. Luison, o deus da morte, se aproximava. Num local como a Amazônia, onde a Umbra era tão próxima do mundo físico, a morte era anunciada pelo uivo de um cão, misturado com um grito de um homem. A entidade da morte, Luison, era um homem que sofria toda lua cheia, destinado a ser o algoz das almas que tinham que deixar o plano físico.

Amado Membira (filho), precisa ser forte! Me de um último abraço, e tome o colar que seu pai me deu. Ele será... - Respirou fundo a mulher. - Será minha lembrança para você, todos os dias! - Respirou fundo mais uma vez. - É um colar com um formato de concha. Iara agraciou seu pai com tamanha beleza e formosura de concha! - Respirou, com mais força que da última vez. - Agora, chegou minha hora, meu filho! Eu o amo! - Num suspiro suave, como que abraçada com calma e carinho pela morte, faleceu a mãe do Swara, em seus braços.
Zaki, abraçado ainda ao corpo sem vida de sua mãe, chorava silencioso. Sabia que, no fundo, aquilo que ela dissera era verdade. Estariam sempre juntos! Seu pai, ela e ele. Os três possuíam uma ligação intima, e agora, mais do que nunca, Ubirajara, detentor da lança abençoada pela própria Gaia, tinha que seguir firme seu caminho.

Enquanto todos festejavam la fora, as lagrimas do Swara caiam sobre o corpo da falecida. Era o fim da vida de sua mãe, o início da batalha do Swara pela honra de sua família.

Na manhã seguinte, toda a tribo se reuniu para o funeral da mãe do Swara. A empatia era pouca com o homem, mas ainda houve comoção. Colocada no barco sob o grande Rio Amazonas, ia o corpo de Iracema Maya, conforme havia sonhado terminar sua vida, aos braços do Y (rio), ao encontro de seu amado, Zori Ukuthula.

Era um dia especial para a tribo, uma grande festança era preparada para sua divindade, uma celebração importante e esperada a cada ano. Suas caças eram oferendas à essa divindade, como agradecimento por sua proteção e bom agouro. Quase todos festejavam naquela noite, dançando a música entoada pelos tambores num tipo de ritual tocado e cantado na língua nativa. Zaki estava afastado, acompanhando sua mãe que parecia despedir-se dele naquela ocasião oportuna. Tranquilamente se despediram tentando não deixar tristezas ou saudades de mais, mas com paz e nostalgia, ela se afastava cada vez mais dele e se aproximando de seu falecido marido. Zaki sentiria sua pele perdendo calor aos poucos, seu coração batendo cada vez mais lento e fraco, até que, depois de dizer tudo o que precisava pra uma despedida, seu olhos se fecharam, porém um leve sorriso brotou de seus lábios. Certamente ela estaria num lugar melhor e com seu pai. Aquele dia seria lembrado por toda sua vida, não só por ser o dia da divindade, como também por ser o dia de sua mãe embarcar em uma nova jornada. Seu pai certamente a guiaria, mas quem o guiaria a partir daquele momento? Nisso a noite se passou, ele não interromperam o ritual em agradecimento a deusa, mas no dia seguinte fizeram um funeral digno pra sua mãe. Mesmo aqueles que Zaki não imaginava ver ali, em respeito a ela estavam ali, e todo o preparo do corpo foi feito pelo xamã da tribo antes de devolvê-lo à natureza. Aos poucos aqueles que foram ao funeral foram voltando aos seus afazeres, arrumando a bagunça da noite anterior.

Assistindo ao funeral, Zaki viu sua esperança ao mesmo tempo se afastar e se aproximar. Sentia-se ligado à Umbra como nunca naquele momento sublime. Viu o corpo de sua mãe se afastar, e o sorriso reluzente dela parecia ser maior que tudo. A benção do Xamã sobre o corpo de sua mãe foi a mais bela que pudera ver e ouvir durante sua vida toda. Respirando fundo, Ubirajara deu um ultimo olhar para o barco, já distante de sua mãe. Era impossível ver o corpo, mas sentiu-se abraçado e reconfortado por ela naquela hora. Virando-se, notou que poucos estavam ainda ali. Dirigiu-se à tenda maior da tribo, onde buscava o Xamã. Tinha que agradecê-lo pelo que fizera por sua mãe. - Obrigado, pajé! Minha mãe está junto de meu pai novamente! Graças a você ela teve uma passagem digna ao outro mundo! - Depois de oferecer-lhe a gratidão, dirigiria-se até o centro da aldeia, pronto para ajudar os outros. Retirava as cinzas da fogueira, restos dos ossos dos animais devorados na noite anterior. Seu estomago roncou. Colocou os ossos empilhados de maneira arrumada nas suas costas, em ordem de tamanho. Depois de retirar todos e juntá-los em um canto, Ubirajara limpou novamente o centro da vila, deixando-a sem nenhuma cinza que fosse. Depois de todos esses afazeres, Zaki correu em direção ao rio, lavando-se e purificando-se. Estava relaxando por fim, após a noite anterior. Seu coração estava em paz.
Saindo do rio, colocou sua roupa e sentou-se no chão. Fechou os olhos, atento ao movimento de tudo ao seu redor. Começou a rezar aos espíritos locais, pedindo direção.

"Aonde devo ir? Me deem chão novamente. Perdi tudo o que tinha." - Repetia em silêncio. Seu semblante não refletia o que tinha em seu coração. Era sério. Quieto. Um rosto que traria paz a qualquer um.

Assim que Zaki entrou na tenda, o Xamã estava preparando algumas ervas usadas pra chás e pastas usadas em curas e cicatrização de ferimentos. Ele em nenhum momento o olhou, só parou o que fazia por breves segundos pra levantar uma mão, aceitando o agradecimento de Zaki. Nisso o rapaz poderia ir fazer suas obrigações como membro da tribo, e assim foi feito, ajudou a guardar a organização da festa do dia anterior. Terminando de deixar tudo em ordem juntamente com alguns dos outros moradores da tribo, Zaki foi ao rio se lavar das cinzas que impregnavam em seu corpo. Após um banho digno, sentou-se à margem do rio e passou a relaxar e em seguida rezar. Apesar da paz em seu rosto, o que o rapaz sentia era um vazio grande dentro do peito. Com a perda de sua mãe, o espaço que ela ocupava jazia uma enorme cratera. Apesar de saber tudo o que sabia, sentir certa felicidade em saber que sua mãe estava bem e junto com seu pai, ainda sim, aquela sensação não sumia, pelo contrário, só aumentava. Nisso, um pouco após sua reza, um som alto conhecido se fez presente. Alguém assoprava a corneta de osso, um alerta para todos da tribo, mesmo os que estivessem distantes ouviriam o som. Assim que chegasse no centro da aldeia, todos estavam ali, e logo Gal'ctha apontou o dedo para Zaki. -Ele matou Xamã! -Acusava enquanto Guarabi concordava. -Eu o vi saindo da tenda dele pouco antes de sua morte! -Nisso a maior parte da tribo cochichava entre si enquanto o chefe observava Zaki, esperando seu pronunciamento perante a acusação de seu filho.