0. Prólogo de Sangue

Shanoa esforçava-se para se manter acordada, entretanto, o cansaço físico e o emocional, como também o mental provocado agora pela leitura um tanto quanto complexa, resultaram no inevitável adormecer. Seus olhos pesados, corpo mole, a cabeça como que flutuando entre nuvens. Ela não cairia de onde jazia sentada, dormindo naquela posição mesmo com o livro aberto em seu colo. Se haveriam pensamentos felizes ou tristes a provocar sonhos e pesadelos, apenas o subconsciente dela saberia.

Névoa espessa, escuridão, frio, e um silêncio avassalador. Nem mesmo os passos de Shanoa faziam sons, sua respiração, além de morta, por mais que forçada não faria som algum. De mesma forma, ela não conseguiria produzir nenhum palavra audível, por mais que movesse os lábios e a língua. Dentre os quatro caminhos haveriam possibilidades, mas nenhuma destas parecia produzir som. O caminho mais à direita estava lameado e o piso de paralelepípedos totalmente revirado, apesar de se poder andar no mesmo. Ao seu lado, ainda na direita, um caminho de onde um vento fortíssimo vinha, tão forte que empurraria-a para trás, mas não a impediria de avançar. Na extrema esquerda um caminho assolado por uma chuva torrencial, e por fim um caminho que ao longe apresentava uma luz avermelhada e fumaça.

Ao se aproximar da direção das chamas a fumaça tomaria conta de tudo, o que era escuro tornou-se ainda mais negro e sufocante, mas agora Shanoa poderia sentir a fuligem em contato com a pele e o forte odor de algo queimado. Assim que passou pela cortina de fumaça, seus olhos veriam com um esplendor tenebroso pilares de magma espapando pelos paralelepípedos, pessoas sengo engolidas pela matéria vulcânica, casas sendo consumidas, o cheiro de madeira e pedras queimadas agora misturava-se com o cheiro da carne humana carbonizada. Apesar de parecer que vulcões emergiam por debaixo do solo, ela saberia que aquilo não era natural, sentia uma perturbação estranha ao mesmo tempo que familiar, que faria sua derme eriçar-se à medida que sua espinha tremia com calafrios. Ao longe ela via uma criatura imensa, como que um morcego bípede, praticamente um diabrete alado, recitando encantamentos estranhos e fazendo gestos com as mãos, esses que eram imitados pelos pilares de lava. Os olhos do ser voltavam-se para Shanoa, brilhando numa tonalidade laranja intensa e bem luminosa.

As chamas eram fortes o suficiente para fazer com que Shanoa colocasse uma mão em frente ao rosto para impedir que o calor intenso lhe incomodasse enquanto caminhava na direção do fogo. A fumaça e as brasas cintilantes se destacavam naquela escuridão maciça, revelando assim uma criatura bem ao longe, entonando e gesticulando uma magia que fazia o inferno assolar a terra e queimar qualquer coisa e qualquer um que se fazia presente no cenário. O cheiro de carne queimando era horrível para o seu nariz e a garota tentava com todas as forças não inalar o odor, abanando então no ar com a mão que havia sobrado. Percebendo enfim que o demônio-morcego que sobrevoava por ali visualizava diretamente para ela com olhos de cor laranja bem cintilantes, a mesma permanece imóvel por alguns segundos, sem tentar realizar qualquer tipo de reação além de manter um olhar fixo até dar o primeiro passo para trás, hesitando em continuar com as passadas. "Isso é mal... Muito mal..."

O demônio fez contato visual e rapidamente virou-se e passou a caminhar na direção dela. Com um estalar de dedos dele, Shanoa perceberia que o ar ao seu redor começava a ficar mais quente. Ele certamente havia usado algum tipo de poder, e aos poucos o calor ao redor da vampira se elevava de tal forma que seria como se ela estivesse dentro de um forno. O fogo então surgiu como que da própria pele dela, fazendo-a arder em chamas de dentro para fora, espontaneamente. Qualquer som ou pensamento que ela tentasse expressar seria consumido pelo instinto vampírico do medo e a sensação insana de uma dor agonizante. Não teria maneira nenhuma dela escapar do destino certo que as chamas tinham para ela, rolar, se bater, todo e qualquer movimento faria as chamas espalharem mais, o calor intensificar, sua carne arder. Rapidamente ela seria reduzida a um corpo carbonizado, e esse mesmo corpo logo seria finalizado em cinzas, e as chamas continuariam a arder no piso de pedras onde jaziam os restos. Mas o destino de Shanoa era pior, ela sentiria sua própria alma continuando a queimar, dragada para um tipo de inferno repleto de vampiros famintos, disputando sua carne e sangue, até que num surto ela acordaria, percebendo que tratava-se de um sonho. - O que houve?! - Indagaria Pisha aflita, sendo esta a primeira coisa que Shanoa veria ao despertar do pesadelo tétrico.

Pisha a olhou sem entender do que falava, apenas colocando a mão em seu ombro e pegando o livro dela gentilmente, sentando-se ao seu lado numa pilastra partida. - Se acalme Criança... Existe muita dor em você... Sei que as coisas parecem sombrias, mas essa é uma existência tortuosa, quer seja natural ou sobrenatural. - Dizia ela com uma expressão neutra e um tom de voz ameno. - Estou interrompendo algo? - Diria uma voz masculina irrompendo a conversa o que fez Pisha quase saltar do assento e encarar raivosa a direção de onde vinha a voz. - Que coisa heim... Nem para receber direito um velho amigo. - Resmungou um homem alto de pele branca, cabelos e olhos negros, trajando vestes também negras, incluindo uma jaqueta de couro. - Angel... Não somos amigos... Nem conhecidos de fato. - Respondeu Pisha voltando a sentar-se. - Sei, sei... Prazer, me chamo Angel, mas isso a nossa amiga enfezada já disse... - Ele se aproximou de Shanoa para um aperto de mão, olhando de lado para Pisha e esta o olhou irritadiça mais uma vez. - Ele é de quem falei... - Afirmou ela e nisso Angel sorriu e esfregou as mãos. - Trabalho?? Diversão?? Noitada na cidade?? - Indagou ele alegre. - Diversão e noitada não são a mesma coisa? - Perguntou Pisha fechando o livro e o entregando a Shanoa. - Considere um presente, essa é a versão que eu traduzi de outro livro mais antigo. - Explicou Pisha se aproximando do altar e molhando as mãos na bacia com água para passa-las no rosto. - Eu vim tirar umas dúvidas na verdade, mas se quiserem podemos sair para beber alguma coisa. - Propôs ele e Pisha permaneceu quieta.

- Proteger?? Quando interessa eu não sou amigo, né? - Comentou Angel cruzando os braços e olhando desacreditado para Pisha que o ignorou. - Olha... Eu acho armas de fogo problemáticas... Preciso espadas, ou machados... Sei me virar muito bem, pode perguntar pra sua amiga. - Responderia ele descruzando os braços e apontando para Pisha. - Ele é um Kindred a pouco mais de uma década, mas sua capacidade de sobrevivência é notável... - Explicou a outra e nisso o rapaz sorriu de maneira convencida. - Modéstia à parte, eu já acabei com três máfias diferentes... Derrotei um Príncipe... E ainda matei um lobisomem quando eu ainda era um Neófito. - Continuou ele andando até onde Shanoa estava, sentando-se um dos assentos de madeira similares aos de uma igreja que haviam ali. - A Sire dele era se Quarta Geração, o Sangue dele é forte por natureza e ele fez questão de aprender muitos truques. - Seria então que Pisha se aproximaria dele, entregando-lhe um saquinho de couro marrom. - Que isso? - Indagou ele confuso. - Pó de fênix... Eu soube por acaso que você estava caçando uma Górgona... - Falou Pisha um tanto sem graça, mas ainda com uma voz e expressões neutras, o que levou Angel a rir e guardar o saquinho num bolso interno de sua jaqueta.

- Ela é neófita... Além disso tem amnésia. - Explicou Pisha e nisso angel se levantou do assento. - Desculpe... Bem... Pó de fênix é o que uma fênix, uma ave imortal, deixa quando morre... Por imortal quer dizer que é difícil de matar, ou requer algo especial, em geral tudo morre. - Explicaria Angel de uma forma simples. - Existe todo tipo de ser sobrenatural além de nós vampiros, Górgonas são criaturas monstruosas, serpentes, praticamente demônios. - Acrescentaria Pisha que olhou a seguir assustada para a cruz de Shanoa. - Uau!! - Diria Angel assoviando para a arma de Shanoa. - É um... Chicote retrátil?? Nunca vi um... E é de metal! - Diria ele ao pega-la em mãos, chegando a fazer um movimento rápido a usando para cortar uma pedra do chão ao meio num único movimento. - Guarde essa coisa, é uma arma da igreja! - Exclamaria Pisha um tanto alterada. - Como sabe? - Perguntou ele devolvendo a arma fechada para sua dona. - Eu estudei alguns aspectos deles, isso é uma Cruz de Batalha, ou Battle Cross, é feita de um metal raro que se alimenta da força vital ou espiritual do usuário, é inquebrável e usada em conjunto com encantos que podem destruir vampiros e outros seres... Existem ordens de templários específicas que usam essa tipo de armamento... - Pisha olhava com certo pavor para a arma, a primeira emoção um pouco mais evidente que veria nela desde seu encontro.